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Noel, Martinho e a morte do samba-enredo
Lucia Mello em 10 de Agosto de 2009
O enredo sobre o centenário de Noel Rosa propicia o reencontro de Martinho da Vila com um gênero musical de que ele não é somente mestre, mas um de seus reformadores: o samba-enredo. Co-autor da sinopse, Martinho participará da disputa de samba-enredo da Vila Isabel. De início, não haveria disputa, e a música lhe seria encomendada, à maneira das peças de teatro e do cinema, em que compositores são contratados para fazer a trilha sonora. Com isso, a escola faria homenagem aos dois nomes que, por meio da música popular, elevaram o nome de Vila Isabel, o bairro e a escola de samba.
Mas depois de críticas da imprensa carnavalesca mudou-se de ideia, e Martinho, que vem de duas derrotas recentes nesse certame, uma delas traumática, tentará levar seu samba para a Sapucaí dezessete carnavais após Gbalá – Viagem ao templo da criação, último samba da Vila Isabel com a assinatura dele. Os dias que antecederam ao início da disputa inflamaram uma polêmica que ruminava desde que se ensaiava a parceria enredo-samba-enredo entre Noel e Martinho. Será a disputa meramente formal, para evitar repercussão negativa da supressão de um evento tradicional? Já está garantida a vitória de Martinho? E se ele perder? Aceitará passivamente a derrota?
Só ao fim se saberá; mas meu interesse na participação do Martinho é outra: o interesse que desperta não é sintoma de que seu estilo de samba-enredo seja apreciado, mas, paradoxalmente, o contrário. Voltarei a este assunto; mas para o entender melhor é preciso analisar o papel que Martinho desempenhou na história do samba-enredo.
Mart'nália e Martinho: patrimônios do samba e da Vila Isabel.
À época dos primeiros desfiles não existia samba-enredo como se conhece hoje. O samba apresentado, à maneira do samba de partido-alto, tinha apenas a primeira parte, que era entoada pelas pastoras, sendo a segunda parte improvisada pelos compositores, e as escolas podiam cantar mais de um samba. Não havia a obrigatoriedade de atrelar o samba ao enredo, como faziam os ranchos. Em pesquisas sobre o período é fácil deparar com sambas que destoam inteiramente do título do enredo.
O que não impediu que escolas - como a Unidos da Tijuca em 33 e a Mangueira em 34 – fugissem à regra e apresentassem sambas de acordo com o enredo, com a segunda parte fixa, sem improvisações. A prática foi-se tornando normal até que, em 52, o regulamento passou a determinar que os sambas tivessem adequação ao enredo. Portanto, o samba-enredo, como gênero musical, com a primeira e a segunda partes, começa a fixar-se apenas nos anos 50.
Em 1949, o Império Serrano apresentara Exaltação a Tiradentes, de Mano Décio, Penteado e Estanislau Silva, presente qualquer antologia. Trata-se de um samba curto, com letra e melodia fáceis de memorizar, daí o sucesso que fez, poucos anos depois, como música de carnaval, dividindo espaço no rádio com sambas carnavalescos e marchinhas.
Pelas suas características, classifica-se como samba interpretativo, aquele que fala do enredo sem apegar-se aos detalhes, atendo-se apenas às suas idéias principais. Difere do samba descritivo, que detalha o enredo, tornando-o longo, normalmente com mais de 20 versos, o que deu origem ao termo “samba-lençol”, por cobrir toda a história do enredo.
Apesar do sucesso de Exaltação a Tiradentes, o samba descritivo é que vai predominar dos anos 50 aos anos 70. Depois, forçadas pelo tempo de desfile exíguo para um contingente cada vez maior, as escolas optam pelos sambas interpretativos, mais acelerados, próximos das marchinhas, propícios à divulgação em rádio e, consequentemente, ao sucesso de vendas do LP.
Martinho da Vila, na segunda metade dos anos 60, promoveu modificações nos sambas-enredos da Vila Isabel em Carnaval das Ilusões (67), Quatro séculos de modas e costumes (68) e Iaiá do cais dourado (69), fazendo-os mais dinâmicos, porém mantendo características descritivas. Antecedeu-lhes um samba em homenagem a Machado de Assis em que Martinho é fiel à descrição tradicional.
Mas o marco da transição foi o samba de Zuzuca Festa para um rei negro (conhecido pelo refrão pega no ganzê, Pega no ganzá) com o qual o Salgueiro ganhou o carnaval de 71. O samba, próximo do ritmo fluminense do caxambu, fez sucesso até no exterior. É preciso entretanto distinguir: Martinho mantém a estruturas descritiva, torna-lhe a letra menos didática; já Zuzuca encurta-o, modifica-o totalmente.
A curiosidade pelo samba do Martinho não é tanto pela beleza da obra, pela qualidade da letra, da melodia, mas pela sua “funcionalidade”, palavra da moda para resumir a adequação aos tempos modernos
Bruno Filippo
Volte-se a este agosto de 2009, quando as escolas iniciam a escolha do samba-enredo. Que tipo de reação provoca sambas-enredos, como os de Martinho da Vila, que fogem ao padrão interpretativo, quando concorrem na quadra? O argumento se repete como mantra: a modernidade exige sambas funcionais, “pra cima”, que levante a escola, com letras e refrões fáceis, andamento acelerado, – e aqueles antigos sambas, embora belos, não se encaixam nos ditames atuais. As coisas mudam. Há verdades e meias-verdades nesse discurso. Deixo-as para uma próxima coluna.
Porque o que há de mais relevante na massificação desse discurso é que ele aproxima o gênero samba-enredo da teoria da morte da canção. O crítico musical José Ramos Tinhorão criou o termo no primeiro ano deste século; Chico Buarque deu-lhe dimensão ao encampá-la em entrevista à Folha de São Paulo, três anos depois. Por morte da canção entende-se a transformação que rompeu com os fundamentos com os alicerces que desde a década de 30 fundamentaram a música brasileira. Essa transformação é impulsionada por inovações tecnológicas e por mudanças de concepções estéticas e sociais.
Segundo o crítico José Miguel Wisnik, a canção que morreu é aquela “sofisticada melódica e harmonicamente, com letras densas e polissêmicas, intimamente entranhadas com a música, sílaba por sílaba, capaz de atingir e interessar grandes públicos, atravessar diferenças sociais, irradiando lirismo e crítica social”. Assim, o rap e a música eletrônica emergem como os gêneros mais afeitos a uma época em que a canção é coisa do passado. A morte, evidentemente, é simbólica: as canções ainda são compostas e consumidas, sobretudo as antigas; mas não têm o mesmo impacto, não exercem a mesma função de antes.
As gerações seguintes perderam a ternura? A sensibilidade? Nossos ídolos ainda são os mesmos; a última grande geração da música brasileira foi a dos anos 60. O saudosismo, a exaltação ao passado é a tônica de espaços onde se ouve e discute música brasileira. Adaptando a teoria ao samba-enredo, explica-se o quadro atual. A curiosidade pelo samba do Martinho não é tanto pela beleza da obra, pela qualidade da letra, da melodia, mas pela sua “funcionalidade”, palavra da moda para resumir a adequação aos tempos modernos. Se vencer a disputa, Martinho estará ao lado de Noel num réquiem para uma época que morreu – a da canção de Noel e do samba-enredo de Martinho.
Fonte: Bruno Filippo
(Colunista de O Dia na Folia)